Epitáfio

epitáfio

Esse mês eu fui duas vezes a mesma funerária por perder duas pessoas queridas. Eram pessoas que acompanharam minha vida inteira até aqui. Adultos que sempre admirei e por quem nutri muito carinho.

Estar numa funerária velando o corpo de alguém amado é relembrar os contos de Laços de família de Clarice Lispector. Volta e meio lembro dela – que louco! das coisas que me arrebataram, a ponto de até hoje me fazer lembrar. Clarice contava sobre o aniversário de uma senhora muito idosa em um conto, e o desenrolar das relações familiares ali no entorno do bolo e da idosa. Em outro conto ela escreve sobre a partida de uma pessoa da família e a reunião de gente que se forma ali, cada qual com seu comportamento peculiar.

Na sala da funerária, a mesma sala, havia a máquina de capuccino e água, o biscoito de maizena ruim, o quarto para familiares, confortável, ao lado da sala principal em que ficava o caixão. No meio da sala, o corpo ali, frágil, gelado, bem ornamentado, bem-vestido, mas literalmente morto.

No entorno, os encontros de quem há muito não se vê. E o desencontro da felicidade de um reencontro com a tristeza do contexto todo. A começar pelos comprimentos: “tudo bem com você?”. Como estar tudo bem num velório? Me policiei para não falar, mas era inevitável.

É um evento social. Pessoas bem-vestidas, cumprimentos, abraços, saudades, histórias antigas, gargalhadas, choros, criança correndo porque não tinha com quem ficar em casa. Dada a hora do fim do expediente, a sala lotou. Todos pareciam ter passado o ponto nas obrigações das firmas e vindo acolher as famílias.

Passei a enxergar coisas novas na observação das microdinâmicas daqueles eventos. Vamos morrer. E não sabemos ao certo quando. Lembrei de um exercício forte de autoconhecimento em que você monta seu epitáfio. Foi criado num experimento por cientistas de psicologia positiva e nos leva a pensar em como queremos ser lembrados.

Que memórias você gostaria de suscitar?

Veio a sensação de zero controle. Não falaremos sobre nós, não estaremos em nossa defesa, não podemos argumentar. Nada mais poderá ser feito. Na mente de cada visitante do nosso velório, haverá um epitáfio ressoando sobre quem fomos. Não há narrativa que possamos construir ali, para enlutarem juntos em sua lembrança. A construção da nossa narrativa na mente de cada pessoa com quem convivemos acontecerá por nossas ações de uma vida toda.

Nossas ações, como pessoas, profissionais, líderes farão a diferença em como seremos lembrados em cada um com quem convivemos. Não há como levar nosso dias no automático. Não dá para líderes replicarem modelos. Não há como continuarmos fingindo que liderar pessoas se resolve num conjunto de hacks de gestão. É sobre nós, sobre o que somos em cada ação.

Posso lhe ajudar?